quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O que a Igreja católica entende por carisma

Introdução

A Igreja sempre foi muito rica em carismas e ministérios. Desde o início, na Igreja primitiva, os cristãos perceberam que toda a atividade dos apóstolos e daqueles que seguiam a Cristo tinham um único objetivo: anunciar que Cristo ressuscitou e está vivo em nosso meio.
Os Atos dos Apóstolos narram como aconteceram os desdobramentos após a ressurreição do Senhor. Todos viviam unidos na oração e na fração do pão e, a cada dia, aumentava o número daqueles que recebiam o anúncio do Evangelho e queriam integrar-se à comunidade dos que foram salvos pelo Deus que derramou seu sangue na cruz. Todos sentiam-se impelidos a anunciar o Evangelho. Dentro deles havia, porém, a certeza de que o Espírito Santo estava com eles e os iluminava.
Muitos derramaram o seu sangue como Cristo. Com isso, o martírio tornou-se o melhor modo de testemunhar a fé na ressurreição. O sangue dos mártires transformou-se em sementeiras de novos cristãos.
Os apóstolos e a comunidade dos fiéis alegravam-se com as afrontas e perseguições, pois sabiam que a promessa de Cristo era de lutas e de sofrimentos, mas garantia-lhes o cêntuplo e a vida eterna.
Portanto, todo êxito obtido na evangelização era visto não como fruto da habilidade de convencimento dos anunciadores da Boa-notícia, mas a confirmação de que a graça de Deus estava com eles.
Diante da missão que herdamos de nossos antepassados, os fiés de hoje são convocados a continuarem firmes na fé e perseverantes no anúncio do Evangelho. Mas, para que isso aconteça, é preciso ter sempre consciência da missão recebida.
Por isso, esse pequeno estudo tem a finalidade de apresentar, de maneira geral, o que é um carisma e como ele se manifesta na Igreja. Mostrará o carisma como dom vindo de Deus, dado gratuitamente às pessoas, segundo o seu beneplácito, ao longo dos séculos. Agora cabe, a cada um, descobri-lo, para melhor servir a Cristo e edificar a Igreja.
Carisma em geral
1. Uso da palavra carisma

A palavra carisma é usada na linguagem popular e na linguagem eclesial ou também teológica.
Na linguagem popular, carisma significa dom natural, talento, qualidade especial de uma pessoa que lhe permite desenvolver também uma atividade especial. Certas pessoas são especialmente dotadas para a organização, para a administração, para a animação, outras para a comunicação.
Carisma é sinônimo de talento, que é um dom natural, embora possa ser aperfeiçoado ou desenvolvido pela própria pessoa que o possui. Todos nós conhecemos, certamente, pessoas carismáticas.
Na linguagem eclesial, a palavra carisma usa-se muito para designar dons especiais, recebidos pelos membros da Igreja, para o benefício de todos. É usado também para caracterizar os movimentos eclesiais.

2. São Paulo apresenta quatro listas de carismas

Encontramos em 1Cor 12,8-10; 12,28-30; Rm 12,6-8; Ef 4,11.
Ao examinar esta lista, encontramos vinte e nove carismas diferentes, mas se considerarmos as repetições, podemos identificar apenas vinte.
Paulo não quis aprofundar sobre o assunto, mas apresenta o carisma, simplesmente, como ação eficaz da graça oferecida gratuitamente pelo Espírito aos fiéis cristãos, de maneira particular e diversificada, para produzir em cada um deles uma determinada capacidade para desenvolver dinamicamente a edificação da comunidade eclesial (1Cor 14,12).
Sobretudo em Romanos e em (1Cor 12,4-11.12-27.28-31), é elaborado o significado deste chamado e missão a ser desenvolvida com uma particular atitude de serviço para a vida e para o crescimento do corpo comunitário dos fiéis (1Cor 12,1; 14,1); carismas (1Cor 12,4); ministérios (1Cor 12,5; 2Cor 9,12s); operações (1Cor 12,6).
Em tudo isso, ele evidencia claramente a sua dimensão trinitária (1Cor 12,4.5.6; 12,28; Ef 4,11). Ele apresenta vários tipos de carismas, às vezes de maneira geral, como dom dado por Deus às pessoas, ao passo que outras vezes apresenta dons mais específicos, ou seja, um chamado particular para o bem da Igreja, uma vocação que torna capaz quem recebe e acolhe para evangelizar, ensinar, governar, profetizar, curar.
Paulo não fornece uma lista precisa de carismas. Ele usa o termo de maneira temática, enquanto que o Antigo Testamento é atemático e raro.
Paulo é rigoroso quando alguém se apropria de maneira individualista dos dons de maneira a não edificar a comunidade. O carisma é sempre mostrado, por ele, em vista do benefício coletivo do corpo Místico de Cristo (1Cor 12,7).
Quem se apropria de um dom, não produz fruto (1Cor 13, 1-3). Paulo intervém com firmeza na comunidade de Tessalônica (1Ts 5,19-21). A caridade é o critério único, para poder fazer crescer o corpo eclesial, para poder atingir a plena estatura de Cristo (1Cor 12,31; 13,13).
O Espírito é, dom por excelência, que consente ao amor de Deus, para ser revelado no coração da pessoa (Rm 5,5; 8,15-16).
Paulo não esquematiza os dons do Espírito, porque são presentes da Trindade às pessoas (1Cor 12,4-6; 1Cor 12,28; Ef 4,11). Os dons têm sempre uma destinação pública e social, não é algo privado ou para benefício próprio.
Os dons são necessários não só para o bem e o crescimento da pessoa, mas de todo o corpo eclesial de todos os tempos e lugares.
Os dons distinguem-se dos talentos pessoais, pois estes são dons naturais, inerentes à natureza humana.
Os carismas são dons sobrenaturais, concedidos pela amável liberalidade de Deus, por meio de uma operação especial do Espírito Santo, que interage com as atitudes naturais da pessoa e habilita o cristão a colaborar com a salvação do mundo, segundo uma especial vocação ou carisma.
O carisma não é algo provocado pela própria pessoa e muito menos oferecido pela hierarquia, mediante algum sacramento. O carisma é fruto livre da graça de Deus.

3. O carisma na história da Igreja

Nos primeiros séculos, o uso da palavra carisma, na tradição da Igreja, era raro e com uma prevalente tendência para exprimir os acontecimentos, com características de extraordinariedade. Existe um certo eclipse em torno do termo carisma, por causa das primeiras heresias da época apostólica, e chegou até nossos dias com interesses variados, só para certos fenômenos de despertar espiritual que ocorrem na vida eclesial.

3.1 Antes do Vaticano II

Antes do Vaticano II, somente alguns Papas fazem alguma referência de maneira geral a respeito da ação do Espírito Santo, quando falam especificamente a respeito das fundações religiosas.
Até o Vaticano I a concepção dos carismas era representada simplesmente como dons extraordinários e transitórios, oferecidos principalmente à Igreja das origens e comunicados sob a imposição das mãos dos apóstolos.
Na luta contra os protestantes, falou-se sempre menos dos carismas e das pessoas carismáticas. Foram vistas como pessoas carismáticas na Igreja o Papa e, ao seu lado, algumas pessoas extraordinárias, por isso os carismas foram vistos como algo raro na Igreja.

3.1.1 Depois do Vaticano I

Após o Vaticano I, o magistério da Igreja fez algum aceno a respeito de carisma, um pouco mais amplo no âmbito teológico. Em 1897, Leão XIII, na sua Encíclica Divinum illud munus, fala do carisma como demostração da origem divina da Igreja, referindo-se aos santos suscitados continuamente na Igreja, pela ação do Espírito. Em seguida o Papa Pio XI fala de carisma na Carta Apostólica Unigenitus Dei Filius, em 1924, e sucessivamente Pio XII com a Mystici Corporis, em 1943, porém continua a considerar os carismas apenas como dons extraordinários e prodigiosos. Supera uma concepção reducionista da Igreja e promove sob os influxos dos novos movimentos eclesiais do fim século XIX, uma eclesiologia na qual os carismas começam a ter relevância no interrior da Igreja como corpo místico, num equilíbrio entre a dimensão hierárquica e aquela carimática. Deste modo foi colocado em evidência a estrutura orgânica de comunhão da Igreja, não limitando apenas o carisma aos graus hierárquicos da mesma.

3.1.2 Vaticano II

Somente com o Vaticano II se recompõe uma dinâmica equilibrada dos carismas. O teólogo que mais influenciou no século XX esta mudança foi Karl Rhaner. Porém, no plano do magistério foi o Papa Pio XII, o qual com sua doutrina além de acolher a variedade e a multiplicidade dos carismas, os inseriu positivamente no interior de uma renovada prospectica eclesial e cristológico-pneumática do Corpo de Cristo. Nesse sentico Rhaner é muito claro: “o elemento carismático nao está à margem da Igeja, mas pertence à sua essência, com os mistérios e os sacramentos”. Todavia com uma diferença, o carisma pertence a livre e imprevisível ação do Espírito Santo, emergindo sempre na história de forma nova, e, por sua vez, deve ser acolhido por toda a Igreja também de maneira nova. Portanto, cabe a hierarquia o delicado e particular encargo de acolher, ensinar e cultivar estes dons vindos do Espírito (1Tes 5,19).
A redescoberta do Espírito Santo na Igreja vai aparecer também com a acentuação dos ministérios na Igreja. Vejamos alguns textos característicos do Vaticano II:

[Lumen Gentium 7] – Um só é o Espírito que, para utilidade da Igreja, distribui seus vários dons segundo suas riquezas e as necessidades dos ministérios.
[LG 12] – Além disso, este mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas “distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz” (1 Cor 12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja, segundo aquelas palavras: “a cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum” (1Cor 12,7). Estes carismas, quer sejam os mais elevados, quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação de graças e consolação, por serem muito acomodados e úteis às necessidades da Igreja.
[Unitatis Redintegratio 2] – O Espírito Santo habita nos crentes, enche e rege toda a Igreja, realiza aquela maravilhosa comunhão dos fiéis e une a todos tão intimamente em Cristo, que é princípio da unidade da Igreja. Ele faz a distribuição das graças e dos ofícios, enriquecendo a Igreja de Jesus Cristo com múltiplos dons, “a fim de aperfeiçoar os santos para a obra do ministério, na edificação do corpo de Cristo” (Ef 4,12).
[AA 3] – O Espírito Santo - que opera a santificação do Povo de Deus por meio do ministério e dos sacramentos - concede também aos fiéis, para exercerem este apostolado, dons particulares (1Cor 12, 7), “distribuindo-os por cada um conforme lhe apraz” (1Cor 12, 11), a fim de que “cada um ponha ao serviço dos outros a graça que recebeu» e todos atuem, «como bons administradores da multiforme graça de Deus” (1Ped 4, 10), para a edificação, no amor, do corpo todo (Ef 4, 1). A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, confere a cada um dos fiéis o direito e o dever de atuá-los na Igreja e no mundo, para bem dos homens e edificação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, que: (sopra onde quer” (Jo 3, 8) e, simultaneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores; a estes compete julgar da sua autenticidade e exercício ordenado, não de modo a apagarem o Espírito, mas para que tudo apreciem e retenham o que é bom (1Tes 5, 12.19.21).
[GS 38] – Os dons do Espírito são diversos: enquanto chama alguns a darem claro testemunho do desejo da pátria celeste e a conservarem-no vivo no seio da família humana, chama outros a dedicarem-se ao serviço terreno dos homens, preparando com esta sua actividade como que a matéria do reino dos céus. Liberta, porém, a todos, para que, deixando o amor próprio e empregando em favor da vida humana todas as energias terrenas, se lancem para o futuro, em que a humanidade se tornará oblação agradável a Deus. No decurso da história da Igreja, os fundadores e fundadoras de ordens, de comunidades religiosas e de sociedades de vida apostólica, foram vistos como pessoas carismáticas e carismáticas foram consideradas também suas fundações.
O Vaticano II refletiu bastante sobre o lugar e o sentido da vida consagrada na Igreja e dedicou-lhe um capítulo da Lumem Gentium (Constituição sobre a Igreja) e emanou um decreto sobre a atualização da vida consagrada. Viu que a vida consagrada tem um lugar e uma significação eclesial indiscutível e, para que a presença e a atuação dos consagrados na Igreja fossem postas na devida luz, o Concílio Vaticano II exigiu que todas as comunidades religiosas na Igreja procurassem retornar às fontes originais do seu ser, da sua missão e se adaptassem também às novas situações do tempo. Pediu para que cada comunidade descobrisse o carisma do fundador e o carisma da fundação. (Perfectae Caritatis, 2)
A reflexão sobre a vida consagrada continuou após o Concílio e culminou na exortação apostólica Vita Consecrata de João Paulo II, março de 1996. Nesta reflexão e na literatura pós-conciliar sobre a vida religiosa, fala-se do carisma do fundador e do carisma da sua fundação.
4.2 Na vida consagrada

[Cumprir juntos a VONTADE DO PAI] – Vita Consecrata, 92.

A vida comunitária das pessoas consagradas é o lugar privilegiado para discernir e acolher a vontade de Deus e caminhar juntos em união de mente e coração. A obediência, vivificada pela caridade, faz com que os membros de um Instituto busquem viver o mesmo testemunho e a mesma missão, no respeito da individualidade de cada um. Nesta fraternidade, estabelece-se um diálogo entre os irmãos para descobrir a vontade do Pai e se reconhece no superior a expressão da paternidade divina.
A autoridade e a obediência são um sinal daquela única paternidade que vem de Deus e da liberdade interior de que confia em Deus, apesar dos limites humanos daqueles que O representam.
Quem obedece tem a garantia de estar seguindo o Senhor e não estará caminhando ao sabor dos desejos pessoais ou das próprias aspirações. Pode se considerar guiado pelo Espírito do Senhor.

3.2.1 Dimensões carismáticas

O termo carisma na vida consagrada começou a ser mencionado pelo magistério antes mesmo do Concílio, o qual já havia colocado algumas premissas para se chegar a uma nova mentalidade que se tornasse mais equilibrada a percepção de tais dons na Igreja e na sua reflexão teológica. Alguns Papas pré-conciliares, de maneira diversa, fizeram algum tipo de referência à questão carimática, mesmo que de maneira genérica.

3.2.2 O carisma do fundador

O carisma do fundador é o dom especial que o Espírito Santo concede a alguém para que seja capaz não só de perceber uma especial necessidade da Igreja, mas tenha também a capacidade de dar-lhe uma resposta especial através da sua fundação. Para dar uma resposta às necessidades específicas da Igreja, o Espírito Santo enriquece com seus dons cristãos que se tornam capazes de fazer nascer na Igreja novas comunidades e novos movimentos. O carisma do fundador é, pois, dom do Espírito dado ao fundador, graças ao qual ele se torna capaz de fundar uma nova comunidade na Igreja, a fim de responder a uma necessidade específica da Igreja. Portanto, iluminados e fortalecidos pelo Espírito Santo, os fundadores com suas fundações querem ir ao encontro de especiais necessidades da Igreja e dar-lhes uma resposta de acordo com o Evangelho.

3.2.3 O carisma da fundação

O carisma da fundação é dom que o Espírito Santo dá, através do fundador, aos seus discípulos e companheiros. Graças a esse dom dado ao fundador e através dele aos seus discípulos e companheiros nasce e se desenvolve, na Igreja, uma nova comunidade com sua fisionomia original. É o carisma do instituto.
No início de cada instituto está o fundador que se dá conta de uma necessidade da Igreja local, mas que tem projeção para a Igreja universal. Todos os institutos nascem para a Igreja e também estão a serviço da Igreja na linha da oração e da contemplação, na linha da atividade apostólica: evangelização, catequese, renovação espiritual, serviço da caridade, cuidado com os enfermos, idosos, moribundos, órfãos, presos etc.

Conclusão

A graça de Deus, desde todo o sempre, foi abundantemente derramada sobre nós. Cada fiel batizado recebeu de Deus dons especiais para serem colocados à disposição da comunidade. Uns receberam cinco talentos, outros dois, e muitos apenas um. Mas o Evangelho nos ensina que não importa a quantidade dos dons recebidos. Cada um deve se alegrar por tudo aquilo que, sem nenhum esforço, recebeu de Deus. “Recebestes de graça, de graça dai” (Mt 10,8).
A Igreja tem como missão fazer crescer os dons recebidos de Deus. Por isso, ela deve sempre buscar em Deus a motivação para anunciar o Evangelho. É olhando para Cristo, o enviado do Pai, que ela vai entender a sua missão.
Portanto, cada membro da Igreja deve descobrir e aceitar os dons como vindos de Deus. Em se tratando de uma comunidade religiosa, a missão é ainda maior, pois participa de um carisma que visa conduzir as pessoas para mais perto de Deus.
O carisma deve ser encarado como um dom a ser vivido em comunidade. Ele não é um dom para ser vivido privadamente, mas serve para a edificação do povo de Deus. Com o carisma recebido, os filhos da Igreja compartilham com todos os batizados as graças dele decorrentes. Ele nao conhece fronteiras e nem limites.
Para que o carisma possa ser compreendido na sua mais ampla dimensão, deve ter sempre Cristo como referência. Jesus Cristo, dom de Deus oferto à Igreja, para proporcionar vida plena a todos. Ele testemunhou o amor de Deus não só por obras e pela palavra, mas principlamente pelo testemunho da cruz. Morreu despojado de tudo: das vestes, dos amigos, da própria privacidade. Com ele não ficou sequer uma gota de sangue em seu corpo. Esvaziou-se completamente.
Não reteve nada para si. Até mesmo seu coração foi aberto pela lança, para que a humanidade coubece nele.
Que o Deus da vida nos abençõe e nos dê a graça da fidelidade pelos dons recebidos. Da mesma forma como ele foi fiel e obediente ao Pai até o fim; que assim o sejamos na vivência do carisma do qual participamos.
Dizionario di pastorale vocazionale. Editrice Rogate, Roma 2002, p. 154-168. Tradução: Pe. Valdeci de Almeida.

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